Chapéu de Sol – Coletivo de Arte e Cultura

A INCRÍVEL HISTÓRIA DE JESUS DA FAVELA MÉXICO 70

Paulo

O dia amanheceu em São Vicente como qualquer outro dia para os moradores da Baixada Santista – exceto para José, carpinteiro que viera de São Paulo e acabou residente na favela México 70. Ele teve um sonho, tinha sido uma noite mal dormida. Não tinha assimilado bem a notícia que Maria havia lhe dado. Seus sentimentos eram confusos: se contasse ao pessoal do tráfico que dominava o pedaço corria o risco de Maria tomar uma surra e até morrer.

         Como ela aparece grávida? Mesmo sendo sua namorada, nunca tinham tido relações. Ficou imaginando com quem ela teria saído. Seria o rapaz do mercado na Mascarenhas de Morais? Será que alguém teria abusado dela? Decerto não queria contar a ninguém, para não gerar conflitos. Afinal, tinha bom coração e não queria prejudicar ninguém, podia ser isso. E aquela história da visão lhe anunciando a gravidez era conversa pra boi dormir…

         José pensou em voltar para o Nordeste, onde tinha parentes, sua profissão e recomeçaria a vida. Mas durante a noite teve um sonho. Um amigo já falecido, chamado Gabriel, lhe dizia para aceitar Maria e seguir a vida. Não acreditava muito nessas mensagens do além, mas pode ser que Gabriel tenha mesmo vindo com algum aviso e, quem sabe, deveria ir a um Centro Espírita e perguntar. Lembrou de quantas pessoas conhecia que assumiam o filho de alguém e o criavam. Eram tantos casos.  Conheceu até aquela mãe que criou a neta como se filha fosse e a verdadeira mãe passou a ser irmã da filha…

         Fumou um cigarro e ia consolidando a decisão de seguir em frente e criar o menino que Gabriel lhe dissera para chamar Jesus. E se caso nascesse uma menina, como seria o nome? Jesualda? Ele de fato amava Maria, haveria de esquecer isso e seguir em frente, um dia ela lhe contaria a verdade.

         Trabalhou o dia todo e foi procurar a namorada para falar de sua decisão, mas, para sua surpresa, ela tinha ido para São Paulo, com o intuito de ajudar a prima grávida, Isabel, que morava na favela de Heliópolis. Chegando no local, Maria bateu palmas no portão e Isabel, que não esperava nenhuma visita, estranhou o fato, mas parou de lavar a louça, enxugou as mãos e saiu para ver quem era. Quando viu Maria na porta do barraco foi tomada de grande emoção. Sentiu chutes do bebê na barriga e comentou com a prima:

         – Olha, Maria, o bebê até deu uns chutes de alegria!

         As duas conversaram muito e atualizaram todos os assuntos de que não tratavam havia tanto tempo. Isabel explicou que não esperava mais, àquela altura da vida, estar grávida, mas recebia a realidade como uma benção. Zacarias, o marido, que desde então andava calado, perplexo, ouvia na congregação que era apenas para aguardar, com louvores a Deus.

         Maria partilhou que também havia engravidado e Isabel ficou muito feliz com a chegada dos primos de segundo grau. As coisas não eram muito diferentes entre a México 70 em São Vicente e a Heliópolis em São Paulo. Muita violência, a polícia nem dava as caras por ali. A inflação andava pela hora morte – quem conseguisse algum dinheiro, era correr para comprar logo, antes de as maquininhas passarem aumentando os preços. Pois Maria ficou ali ajudando Isabel. Passados alguns dias, num final de semana José aparece de surpresa e comunica a namorada que assumiria aquela criança. E vida que segue.

         Nasceu o filho de Isabel, que foi chamado João. Zacarias voltou a ser o homem alegre de sempre. Maria voltou para São Vicente e passou a morar com José. Aconteceu, então, de José ter que ir para Belém, para resolver umas questões de herança familiar – e tinha de ser pessoalmente. O clima pela México 70 não andava bom, com guerras entre facções e a polícia contra todos. José resolve levar Maria na sua motoca e houve quem achasse que o doido fez aquilo para que Maria perdesse o bebê e resolvesse aquela dúvida de uma vez por todas, mas não, José não pensou em perigos, estava feliz em estar com Maria.

         Viagem longa, Maria perto de ganhar o bebê e, como muitos previram, chegando em Belém, o menino veio a nascer, logo após a moto de José sofrer uma pane. A cidade lotada, era época do Círio de Nazaré, os parentes de José moravam mais para o interior e a família não teve outro jeito, por obra e graça de uma alma caridosa, senão abrigar-se nos fundos da oficina onde o pai deixara a moto para consertar. Por companhia, o recém-nascido teve, além dos pais, os animais domésticos do dono da oficina.

         Pela madrugada, chegam ao local três motoqueiros em suas Harley Davidson e deixam alguns presentes: uma correntinha de ouro para o menino, um incenso para serenar as dores da jovem Maria e, para o pai, o motoqueiro mais velho ofereceu um baseado, que José guardou para fumar mais tarde, longe da mulher e da criança recém-nascida.

         As coisas iam bem, até estourar uma guerra na Favela da Vila da Barca. O dono da biqueira andava atrás justamente dos rapazes da Harley Davidson e o boato era que eles eram amigos do José. Este, quando soube da notícia, tremeu de medo, só que, mais uma vez, recebeu em sonho a visita do falecido amigo Gabriel, que o orientou a fugir dali. Afinal, o menino corria perigo.

         Com o dinheiro da herança em mãos, fez um rolo com a velha motoca e saiu de lá com uma Harley WLA em bom estado. Maria, levando o menino Jesus no colo, acomodou-se com razoável conforto no banco do passageiro e a família tocou para Salvador, na Bahia.

         Tudo parecia voltar à normalidade, mas, como José havia seguido o conselho dos sonhos por duas vezes e tinha dado tudo certo, um belo dia Gabriel lhe aparece novamente e diz ao amigo: “Volte para sua terra, o menino já não corre perigo”. José obedece e volta para a México 70 , onde, feliz com Maria, criaria Jesus até a idade adulta.

         Vida que segue, o governo acabara com o fantasma da inflação, o Brasil tinha uma nova moeda e alguns afirmavam que o país estava “condenado” a crescer. A democracia, então, renascia de fato, época em que Jesus chegava aos doze anos. Um belo dia, José se anima a ir com uma excursão para Aparecida do Norte. Foram três ônibus e, num 12 de outubro, lá estavam eles, no maior santuário nacional, orando e – claro – tomando todas nas “horas vagas”.

         Resultado da carraspana da noite anterior, José nem se lembrava direito de ter voltado para o ônibus. Acordou meio de ressaca e viu que Maria dormia ao seu lado, mas deu pela falta de Jesus. Acordada pelo marido, a mulher supôs que o menino podia estar no outro ônibus, com seus novos amigos, e virou para o lado, voltando a dormir. Mais tranquilo, José pegou no sono novamente. Horas depois, a excursão faz a primeira parada na viagem de volta e  todos se dão conta de que Jesus não estava em nenhum dos ônibus. Bateu o desespero no casal, que se põe a ligar para a igreja, tentando alguma informação, mas, não tendo como voltar, foi aquele Deus nos acuda…

         Passaram todo o dia seguinte andando por lá, mostrando foto, perguntando se viram o menino e nada. Alguém comentou que em Roseira tinha um mosteiro, o mosteiro da Sagrada Face, aonde muitos chegam ainda meninos e ficam até virar padre ou irmão religioso. De vez em quando uma Kombi sai de lá vazia e volta cheia de meninos que são acolhidos. José e Maria foram, então, até lá, andando, passaram por um cemitério, viram uns bois por ali, foram em direção ao mosteiro e viram um grupo conversando em frente, próximo a uma imagem de Nossa Senhora. Chegando mais perto, Maria arriscou: “Até parece Jesus, falando ali no meio”… Foram se aproximando e cada vez ficando mais convictos de que era ele mesmo.  Quando tiveram certeza, saíram correndo, aos gritos de “Jesus, Jesus, Jesus”, todos olhando espantados, e Jesus ainda lhes deu uma bronca: “Oh, mãe, tô aqui falando e vocês atrapalhando”!

         Foi uma alegria geral. Os irmãos falaram que o menino tinha carisma, deviam voltar um dia. Agradeceram e foram embora com Jesus, de volta para a México 70.

         Vida que segue, festa de trinta anos de aniversário de Jesus. Já era carpinteiro de profissão, como o pai. José falecido, Maria não conseguia controlá-lo. Ninguém conseguia. Vez ou outra, ele dava uns perdidos e sumia com sua motoca. Tinha um discurso que o povo da igreja achava meio subversivo. José seguira sempre católico, mas Maria tinha virado evangélica. Jesus criticava a ambos, eram “por fora bela viola e por dentro pão bolorento”. Tinha muitos amigos, era mais de ler, navegar na Internet e viajar de moto. Não tinha namoradas. Mas gostava de uma festa, não perdia um pancadão da favela.

         Um dia, foi até Heliópolis falar com o primo João. Os dois conversavam muito pela Internet, WhatsApp etc. João, um pouco mais velho, via no primo um líder carismático, alguém que poderia cumprir uma missão. Ele mesmo tinha criado uma ONG que tinha lá algo de hippie, mas também de religioso. Alguns o chamavam de João Batista, porque batizava os membros que ingressavam nessa ONG. O líder do PCC no pedaço, Herodes,  gostava muito dele, mas como João não tinha papas na língua e falava o que achava que era certo, de vez em quando os dois batiam de frente.

         Jesus vinha amadurecendo a ideia de criar na Baixada uma comunidade, no mesmo estilo da que João tinha criado em Heliópolis. Resgatar a molecada da rua, tirar do crime, ter um espaço de lazer. Acontece que houve uma festa de casamento em Cubatão, que reuniu gente de todo lado. Da México 70, de Heliópolis, do Itapema, dos morros de Santos. A conversa girava sobre isso, criar uma ONG, uma Central das Comunidades. Com a cerveja já subindo um pouco, tinha gente falando em partido político, dar uma cara política para o PCC – até isso rolou. Jesus e João não queriam contato com o PCC, a gente corre junto, mas sem se misturar.

         Alguém avisa que acabou a cerveja. Maria chama Jesus e dá uma provocada nele, sorrindo: “E aí, não vai criar uma ONG? Então é melhor aprender a passar o chapéu pedindo dinheiro”. Jesus hesitou um pouco, mas acabou sendo ele mesmo quem fez o corre e pediu para alguém ir comprar. “E não me venha com Skol e Brahma, traz logo Heineken”. E assim foi feito. Quando começaram a surgir as primeiras garrafas verdes, o povo todo ficou impressionado: “Pô, serviram Skol no começo e só agora liberaram as Heineken…”

         A experiência de se tornar uma liderança e fazer as coisas acontecerem impactou bem nosso Jesus. Ele começou a entender tudo o que João pregava. Passado um tempo, chegou a noticia trágica: João tinha sido assassinado pelo PCC. Herodes, que até era amigo do acusado, foi chamado pelo comando da irmandade “para as ideias”, como se diz no crime quando uma decisão importante deve ser tomada, e ali não pode defender João, que foi decretado de morte. “Ele sobe” – era a senha que sentenciava todo aquele que mexia com os interesses da irmandade. E João subiu.

         Para Jesus foi como se o mundo tivesse acabado. Pegou sua moto e caiu na estrada. Nunca mais abriu a carpintaria, apesar de ter voltado depois de quarenta dias. Uns dizem que foi para o Nordeste, outros para o Sul, mas, na real mesmo, ele estava o tempo todo na Prainha Branca, no Guarujá. Pensando em como seguir sem João.

         Nos primeiros dias fumou uns baseados, bebeu todas, viu estrela cadente, faíscas na areia, mas já nem sabia o que era real ou imaginação. Um dia acordou e resolveu caretear de vez. Leu sobre os Doze Passos, lembrou-se de tudo que João pregava, de como o incentivava, dizendo-lhe que tinha jeito para a coisa, e, lembrando-se da festa em Cubatão, resolveu que iria mesmo montar a tal ONG – cujo nome ficou sendo Casa do Caminho.

         Para Jesus, a partir de então, não havia conversa despretensiosa, todo contato com outro ser humano era momento de passar amor, acolher, perdoar. A ONG iria atuar em que área? Todas: menores abandonados, prostitutas, viciados, mendigos, alcoólatras – e até gente dita normal seria bem-vinda, se é que existe gente normal neste mundo de Deus.

         Maria não se atrevia a dar palpite – e eis que surge outra Maria, a da Bacia do Macuco, que vira o braço direito de Jesus na ONG. De lambuja vieram outros três colaboradores, três pescadores da Prainha Branca: Simão, André e Felipe.

         Jesus andava por todas as comunidades: Quarentenário, Humaitá, Tancredo, Vila Progresso e, por onde passava, tinha êxito em formar um núcleo da ONG.

         Da mesma forma que aconteceu com João em Heliópolis, aconteceu com Jesus: começou a incomodar. Políticos, crime organizado e às vezes os dois juntos, pois também havia os políticos diretamente ligados ao crime organizado. Além disso, começou a incomodar também as igrejas evangélicas e católicas, se bem que, com estas, a convivência era mais civilizada, rolava até uma ajuda. Fato mesmo é que rolava uma certa inveja.

         Até uma espécie de Posto de Saúde com médicos voluntários foi montada. As pessoas eram curadas. Psicólogos se ofereciam, as pessoas eram ouvidas. Quem tinha condições doava comida e quem não tinha, vinha buscar, e a comida era multiplicada.

         Em três anos a Casa do caminho era um sucesso, já com repercussão nacional. Utilizando as mídias sociais, colocou em conexão as periferias do Brasil.

         Com a pandemia, o papel de destaque foi ainda mais ampliado. Agora a ONG era abordada pelos dois lados: PCC e políticos. Jesus não queria envolvimento, mas acabou ficando difícil, pois o envolvimento institucional acabava ocorrendo: cadastrar beneficiários do sistema, distribuir cestas básicas, verbas do governo, local de vacinação etc. Os políticos não queriam falar com o PCC  e usavam a ONG como ponte, pois esta, sim, falava com todos os lados.

         Até que, ainda em tempo de pandemia, o PCC resolveu fazer um pancadão e Jesus comprou briga com os dois lados. Bateu de frente com a facção para não acontecer mais aquele tipo de coisa e, com o poder local, brigou para oferecerem opções de diversão para os jovens da periferia, mas com regras, distanciamento, máscaras, policiamento, sem a entrada de armas, drogas etc.

         Um dia bombou no WhatsApp: Jesus estava decretado. O crime consultara seus políticos e os mesmos não tinham dito não, o que equivale a dizer manda ver.

         Até hoje ninguém sabe direito o que ocorreu: uns dizem que Jesus foi queimado lá no Lixão, outros dizem que foi crucificado. Tem até a versão de que foi jogado no mangue.

         Maria da Bacia aparece num domingo, dizendo que o viu, o ressuscitado mandando dizer que fossem lá para a Prainha Branca, onde estaria para quem quisesse vê-lo. Os mais próximos foram: Maria, sua mãe Ana, Maria da Bacia, Simão, André e Felipe. Só não foi Judas, a quem muitos apontam como o X-9 que indicou para o PCC onde Jesus estava.

         Também não se sabe direito o que ocorreu na Prainha Branca. Uns dizem que Jesus realmente esteve lá, comeu e bebeu com os amigos, e disse que precisava dar uma sumida, pois estava jurado. Outros, ainda, dizem que é tudo lenda, que, na verdade, ficou todo mundo doidão na praia, tudo não passando de invenção. De vez em quando alguém diz encontrá-lo pelas estradas da vida, mas a Verdade, mesmo, nunca saberemos.

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